Data: 30/10/2013
De: JCbernardes
Deus na Guia e o Choro da Criança
Raimundo Peão, como o Tonho nos Tabuões, ou o Zé Bidico são pessoas que marcaram fortemente a sua passagem por entre aqueles que os conheceram. Como serviçal, amansador de cavalo e burro bravo, tropeiro e condutor de boiada, picador de pedra de moinho, carreiro e contador de casos, ou mesmo tratador de porco e tocador de engenho de rapadura, Raimundo Peão era inigualável. Desde antes de sua viagem épica em companhia do Seu Luiz a São Manuel dos Pelados na região de Senador Firmino, ele era o serviçal leal e pau pra toda obra. A sua lembrança mais remota me remete aos 3 ou 4 anos quando tiritando de frio, em espesso nevoeiro e enrolado em cobertor, eu estava sentado no travesseiro sobre a cabeça do arreio em que ele montava a mula Moeda, a caminho do Jubileu do Bacalhau.
Mas, era como carreiro que as minhas lembranças são mais marcantes. Quem é capaz de esquecer do cantar do carro de boi, tendo-o ouvido. Para o som mais agudo apertava-se o cocão do eixo, ou o contrário para um som mais grave. Havia uma infinita combinação sinfônica, na medida em que o experiente carreiro apertava ou afrouxava os cocões, esquerdo ou direito. Era possível identificar, de longe, qual carro de boi, qual carreiro se aproximava. Era mesmo uma marca registrada. Nisto o Raimundo era mestre.
A aguilhada não possuía ferrão, em vez dele um conjunto de argolas como guizo. Era bastante para as juntas de boi fazerem o que era preciso ser feito. Recordo-me da famosa junta de coice: Barão e Carinhoso. O Barão ocupava o lado direito e o Carinhoso o esquerdo. É aí que acontecia a magia do iniciar um trabalho, especialmente um trabalho pesado. Altaneiramente o Raimundo Peão subia no cabeçalho, tirava o chapéu e dizia em voz alta:
- Deus na Guia, - e ao balançar a aguilhada, completava -, abre pra fora Barão! Entra Carinhoso! Vamo em frente!
É inesquecível.
O tempora! O mores! (*)
O tempo correu, muito tempo.
De repente alguém me diz: o Raimundo Peão está doente, internado no Hospital da Santa Casa, muito ruim.
A pessoa que me conduziu até ele, através de um longo e largo corredor apinhado de doentes deitados em colchões no chão pela enfermaria afora, disse-me: é este.
- Ei Raimundo, como tá você?
Barba por fazer, olhar avermelhado, distante e melancólico, ele me olha e demora a me reconhecer.
- Ô Zezé, que bom ver você.
Ao dizer isto, como uma criança desabou a chorar. Agachei para acarinhá-lo e também como uma criança desabei em choro.
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(*) Oh! Tempos! Oh! Costumes!
27.10.2013