Ser CALAMBAUENSE, é ter berço diferente! É recordar o passado, acreditar no futuro e viver o presente.


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Data: 28/12/2013

De: JCBERNARDES

Assunto: O CUITÉ CURTIDO

O Cuité Curtido

O cuité, quando apanhado maduro, cuidadosamente serrado, limpo, lavado e devidamente seco, transforma-se em um utensílio de extrema utilidade para aquele que ainda habita lá nos calcanhares de judas, lá nos cafundós. Quando curtido nas dependências de domínio do fogão a lenha, então é uma vasilha indispensável na despensa.

Dona Maria, mulher do Ovídio Redondo, era de profundo senso de trabalho e organização. Estava fora do trabalho há vários dias por motivos de doença quando Dona Luzia resolveu visitá-la, levando-nos com ela: Didi e eu. Ovídio Redondo era querido por todos. Trabalhador assíduo, sorridente e loquaz, sabia merecer a confiança que todos depositavam nele. Morava junto da fazenda do Sr. Nem. Casa simples, recheada de detalhes e conchegos, quintal abastado de tudo. Seu filho, Benedito Redondo, herdou do pai as qualidades por todos reconhecidas. Ovídio não estava em casa.

A prosa das duas se desenvolvia na sala. Conversando na cozinha estávamos nós, o Benedito, o Didi e eu que ouvia tudo.

- Ô Bené, faz um café pra Dona Luzia, disse Dona Maria.

Prontamente o Bené pega uma peneira e diz: Ô Didi, vamos apanhar o café. Fica aí Zezé, você é muito pequeno.

Não demorou muito e estavam de volta com a peneira cheia de café em cereja.

- Ô Didi, agora nós vamos lavar o café.

A bica fica logo à porta da cozinha e com muita água. O café é lavado e apurado.

- Ô Didi, agora nós vamos socar o café.

O pilão devidamente limpo recebe todo o café. Socado, em pouco tempo tudo se transforma em uma massa uniforme ligeiramente esverdeada.

- Ô Didi, agora nós vamos lavar o café de novo.

Novamente a força da água da bica limpa e apura tudo, aparecendo o café in natura, belamente esverdeado. A magia de tudo isto vai, crescentemente, tomando conta do ambiente. A complexa singeleza do matuto se instala de maneira vívida e em cores.

- Ô Didi, agora nós vamos torrar o café.

Dizendo isso, coloca uma grande panela de ferro na trempe do fogão e atiça o fogo com força, colocando mais lenha. O fogo é avivado e o café despejado na panela. Sempre mexendo o café com uma colher de pau, aos poucos o cheiro forte do café torrado vai aparecendo. Não demora muito, tudo está pronto.

- Ô Didi, agora nós vamos socar o café torrado.

O pilão novamente é limpo e acondicionado. O café é socado e, rapidamente, transformado em pó. O cheiro característico é percebido. O pó de café é acondicionado em uma vasilha.

- Ô Didi, agora nós vamos cortar cana para fazer a garapa.

E lá se foram. Uma touceira de cana caiana foi desfalcada e as olhaduras devidamente talhadas. Os nós da cana foram esmagados com um soquete de pau apropriado.

- Ô Didi, agora nós vamos moer a cana.

Ao dizer isto providencia a limpeza das moendas da engenhoca com muita água e esfrega.

- Ô Didi, ajude-me desse lado aí.

Ele sabia que o esforço do Didi era inoperante, mas o que importava era a magia da engenhoca a produzir um som intermitente, lembrando o carro de boi. De repente a lata está cheia. Após coar a garapa com um pano ralo, sentencia:

- Ô Didi, agora nós vamos ferver a garapa.

Pegou uma chaleira na prateleira, destampou-a e colocou-a no fogo. Encheu-a de garapa e tornou a atiçar o fogo, ainda avivado. Apanhou uma escumadeira e foi retirando a espuma esbranquiçada que se formava na chaleira, na medida em que o fogo apertava e a garapa fervia. O cheiro característico da garapa a ferver também inunda o ambiente. Tudo pronto, nova sentença:

- Ô Didi, agora nós vamos coar o café.

Apanhou o mancebo, limpou-o com um pano e foi buscar o coador que estava no armário ajeitando-o no mancebo. Também buscou o bule esmaltado de cor azul. Pôs várias colheres de pó de café no coador e com cuidado pegou a chaleira com um pano e foi despejando lentamente a garapa fervente no coador. O coador, todo em fumaça, deixa vazar o ouro preto que enche o bule colocado adequadamente sob ele. Um cheiro forte e delicioso toma conta de tudo.

- Tá cheirando gostoso, disse Dona Luzia lá na sala.

O Bené apanha um prato, coloca nele duas pequenas vasilhas esmaltadas brancas e castigadas, enche-as de café e vai servir Dona Maria e Dona Luzia na sala. Ao voltar à cozinha sentencia, agora de maneira mais afável:

- Ô Didi, agora nós vamos tomar o café!

Apanha três cuités curtidos que estavam debruçados no armário e coloca café neles até o meio.

Não me lembro do gosto do café, mas, pelos comentários, deve ter sido maravilhoso.

Há pouco tempo, ouvi o Didi a se recordar deste fato. Quase com lágrimas nos olhos, comentou:

- Como eu gostaria de rever aquele momento, aquele café. Ainda sinto o seu gosto.

Imediatamente veio-me à memória os primeiros versos do famoso poema de Casimiro de Abreu:

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!

JCBernardes
27.12.2013

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